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SESAU mantém objetivo de desalojar comunidade Warao de ocupação espontânea em Boa Vista/RR

Foto do escritor: Fabio AlmeidaFabio Almeida

"Nós vivemos aqui há 9 anos. Quando chegamos aqui estava tudo cheio de mato. Hoje, depois que a Operação Acolhida levou tudo e destruiu nosso barracão feito de cobertura de Butiti, estamos resistindo com nossa comunidade Yakera Ine.", fala de Euligio Warao.

Audiência de escuta dos indígeans Warao. Foto Fábio Almeida.
Audiência de escuta dos indígeans Warao. Foto Fábio Almeida.

No último dia 18/03/2025, a SESAU e a SETRABRES, estruturas do governo do estado de Roraima, promoveram uma audiência pública para escuta de indígenas da etnia Warao que moram na comunidade Yakera Ine, localizada no Pintolândia. A escuta teve como objetivo central ouvir caminhos propostos pelos indígenas sobre seu desalojamento do local.


O SUS, em suas 3 esferas de governo, aprovam o desalojamento dos cerca de 350 indígenas Warao que vivem na ocupação espontânea, desde o ano de 2016, segundo afirmações do senhor Ryan Matheus Lima Melvillle, representante da SESAU/RR na audiência pública. O terreno teria sido doado pela Prefeitura Municipal, o Ministério da Saúde aprovado a proposta do Estado em construir nesse local uma segunda maternidade pública, na cidade de Boa Vista. Ao governo de Roraima, coube definir e o local, consequentemente a expulsão dos Warao.


A preocupação dos Aidamos começou, em 23/01/2025, quando receberam a visita de um representante da SESAU informando que eles teriam 40 dias para deixarem a ocupação, veja matéria aqui. Neste período, uma ampla articulação política e a publicização da situação permitiu que outros atores entrassem em ação, especialmente a Coordenação Regional da Funai que havia recebido um ofício da SESAU, solicitando que a instituição removesse os indígenas da comunidade Yakera Ine.


A Audiência Pública


Instituições públicas presentes na audiência pública
Instituições públicas presentes na audiência pública

O encontro teve início as 14:30h, apesar da SESAU/RR disponibilizar uma tenda e cadeiras não tinha água que permitisse o pleno acompanhamento dos indígenas que necessitavam sair, devido o calor imenso. Participaram, representando as instituições públicas: a FUNAI, SESAU, SETRABRES, MPF, SEPI e a procuradoria do estado de Roraima. O FDCA/RR, Unicef e ACNUR representaram organismos sociais. Cerca de 150 Warao deixaram de desenvolver suas atividades laborais de sustentação econômica para participarem do encontro, em virtude do tema transformar completamente suas vidas.


A fala do representante do MPF, procurador Alisson Marugal, deixou claro que o intuito é promover o cumprimento do que estabelece a Convenção 169 da OIT, reconhecida no Brasil pelo Decreto 10.088/2019. “Escutar os indígenas impactados pela ação do Estado, aqui para construir uma maternidade, é o que determina a Lei, o MPF está aqui para garantir esse processo que permita as pessoas conhecerem todo o processo com os ganhos e impactos sociais que causam, especialmente aos indígenas”, afirmou.


O representante da procuradoria do estado de Roraima informou que a escuta era a primeira realizada pelo governo, segundo ele o objetivo era encontrar uma solução que atendesse aos interesses de todos, mas a decisão estava tomada, caso fosse necessário, o Estado, acionária a justiça para reaver seu terreno, doado recentemente pelo município de Boa Vista, para construção da maternidade.


Essa posição legalista do direito de posse, ante a existência de pessoas sobre o terreno público, já havia sido externada pela SESAU, por meio do ofício 304/2025/SESAU/CGAN, quando afirma que no dia 27/01/2025 - 3 dias após a presença de servidores da instituição, acompanhados de policiais armados com fuzis, informaram que os Warao teriam 40 dias para deixar o local – a gestão encaminhou ofício a procuradoria do estado para ajuizamento de ação cabível.



No documento destaca-se duas questões relevantes. A primeira delas é a demonstração clara da gestão do SUS estadual falar em remoção humanizada, mas agir de forma contrária, pois apenas 4 dias após a comunicação, aos indígenas da decisão de construir a maternidade onde eles moram, foi solicitado uma ação judicial de antecipação de tutela a procuradoria estadual. A outra questão consiste na comprovação da omissão da gestão estadual em enfrentar a crise humanitária, vivenciada pelos venezuelanos, especialmente os indígenas, ao atribuir a responsabilidade a outras instituições.


Esse ofício foi encaminhado ao procurador federal ,Alisson Marugal, em resposta a uma notícia de fato (processo 1.32.000.000181/2025/7º ofício). A partir dessa comunicação foi realizada uma reunião com os órgãos SESAU, FUNAI, ACNUR, PGE/RR, Operação Acolhida, MPI, MDS. Nesta memória da reunião, o general Helder de Freitas, coordenador operacional da Operação Acolhida, afirmou ter condições de abrigamento desde que respeitada as regras da Operação Acolhida.



Um dos principais pontos que faz a comunidade Warao não querer integrar o abrigamento consiste na rigidez e opressão cultural das regras da Operação Acolhida. No contexto dos abrigos institucionalizados para acolhida de imigrantes, os indígenas não podem preparar suas comidas, não podem praticar seus rituais e comemorar suas festas, não podem receber visitas de parentes, além das vozes dos Aidamos (lideranças) serem silenciadas pela força do fuzil, como relataram em suas falas durante a audiência pública.


Comunidade Warao durante a audiência de escuta
Comunidade Warao durante a audiência de escuta

O encaminhamento do procurador federal Alisson Marugal, acatado pela totalidade dos presentes quando da reunião relatada na reuniãoentre instituições, realizada em março, foi a consolidação de um plano de ação em três etapas: 1) comunicação aos indígenas, a fim de noticiar as intenções do Estado e escutá-los acerca das suas demandas; 2) avaliação, pelo poder público, acerca da possibilidade de acolher as demandas e elaboração, se for o caso, do mencionado plano de desocupação humanizada; 3) apresentação do plano aos indígenas para que deliberem se concordam ou não com o plano. A consulta realizada, no último dia 18/03/2025, foi o primeiro passo desse processo, a implementação do segundo passo, consiste na elaboração de um plano de desocupação.


Procuradores Federal e Estadual escutam os Warao. Foto Fábio Almeida
Procuradores Federal e Estadual escutam os Warao. Foto Fábio Almeida

A fim de ter elementos plausíveis a esse plano de desocupação, Marugal, em determinado momento falou para os Warao que já tinham falado muito sobre a história e os conflitos existentes durante a ocupação da atual comunidade indígena urbana Yakera Ine. “Vocês necessitam dizer o que querem”, afirmou o procurador. A disponibilidade de casas e o assentamento em outro terreno foram os encaminhamentos elencados pelos órgãos públicos. Porém, a voz da maioria dos indígenas afirmou não querer deixar a localidade. "Não somos ouvidos”, afirmou uma das lideranças.

  

Intervenções das lideranças indígenas na Audiência Pública


Foto Fábio Almeida
Foto Fábio Almeida

A fala principal foi do Aidamo, Euligio Warao, ao apresentar todo o histórico de sofrimento vivenciado pela comunidade, desde a chegada a terra, no final de 2016, a quarta tentativa de expulsão deles do local. “Vivemos aqui não nas melhores condições, mas aqui temos liberdade, podemos comer as coisas que gostamos e da forma que nos agrada, temos nossos filhos e filhas estudando, apesar de não serem todos, é difícil conseguir matricular as crianças. Podemos fazer nossas festas, rituais. Vivemos com felicidade, mesmo em situação difícil”, disse Euligio.


Foto Fábio Almeida
Foto Fábio Almeida

As falas posteriores em sua grande maioria relataram que os Warao já se estabeleceram social, economicamente e culturalmente com a vizinhança. A sustentação das falas, em torno da continuidade da comunidade no Pintolândia, apresentam relações pessoais estabelecidas nas unidades de saúde municipal e estadual que se encontram na circunvizinhança, na existência de escolas do ciclo básico e médio próximas a comunidade Yakera Ine, bem como as relações econômicas com a prestação de pequenos serviços nas redondezas da localidade. Para Euligio, “Essas garantias não existirão se nos tirarem daqui. Ainda temos indígenas Warao que saíram daqui em 2022, para o Rondom 3 quando a Operação Acolhida deixou de nos atender, que os pais ainda não conseguiram colocar seus filhos na escola. Por isso, queremos permanecer aqui”, disse.  


Escute o áudio das intervenções Warao durante o evento.



 A Comidade Yakera Ine


A comunidade Yakera Ine começa a estruturar-se no final do ano de 2016, após o acirramento das condições de sobrevivência na Venezuela, seja pela crise política ou pela imposta crise econômica com os bloqueios de comercialização aprovados pelos EUA e algumas nações europeias, entre elas a Espanha. Neste primeiro momento, de ocupação espontânea convivem indígenas e não indígenas, os conflitos eram permanentes. Com a entrada do governo do Estado para organizar a situação é criado em 2017, um abrigo específico indígena nessa localidade, coordenado pela Setrabres, atendendo todas as etnias indígenas venezuelanas, por meio de parcerias com organismos internacionais, especialmente a Fraternidade.


Local da Comunidade Yakera Ine
Local da Comunidade Yakera Ine

Após, a criação da Operação Acolhida, em fevereiro de 2018, permanece a lógica do abrigamento indígena, com a entrada de vários outros atores institucionais, especialmente o Exército brasileiro. Nesse abrigo teremos posteriormente o assassinato de um indígena, por um militar, investigação nunca finalizada. Bem como, a jaula, conhecida como cantinho do castigo, em que indígenas eram colocados, no caso de descumprimento de regras.


No ano de 2022, a Operação Acolhida encerra suas atividades no local, determina a saída dos Warao, no entanto, 240 indígenas decidem permanecer no local. A partir desse momento começam a sofrer ameaças e mais violências por parte do Estado brasileiro, como pode ser visto nesse vídeo. Sendo então idealizada a comunidade Yakera Ine, que na tradução significa “estou bem” que resiste a várias tentativas do estado brasileiro de destruí-las. “Aqui, desde a saída da Operação Acolhida e da ACNUR não perdemos pessoas, pelo contrário, parentes que foram para o Rondom 3 e para o abrigo do Jardim Floresta, retornaram, seja por serem expulsos dos abrigos ou por quererem sua liberdade e o desejo de seus filhos estudarem”, disse Euligio Warao.

 

Um planejamento sem os Warao


Líderanças quando dos conflitos com a Operação Acolhida em 2022. Foto Fábio Almeida
Líderanças quando dos conflitos com a Operação Acolhida em 2022. Foto Fábio Almeida

O MPF neste caso específico reproduz uma prática histórica do Estado brasileiro, planejar a vida e a forma de viver de indígenas sem suas presenças na mesa de negociação. A reunião de 21/02/2025, tinha presentes indígenas que possuem limites institucionais, por representarem a Funai e o MPI. Já os Warao, com sua voz e sua perspectiva de vida estavam ausentes. Estranho a Funai e o MPI aceitarem sentar a mesa sem a presença dos indígenas a serem impactados pela intervenção estatal. Essa ausência reproduz a premissa colonizante de que nós temos o direito de decidir sobre a vida de outras pessoas. Essa, infelizmente, é uma prática do Estado para o coletivo de povos que constroem esse país.


Representantes da Funai/RR com os Warao
Representantes da Funai/RR com os Warao

Durante um encontro entre a representante estadual da Funai e as lideranças Warao, foi afirmado que ela tentaria com o procurador garantir a participação de 4 indígenas na segunda etapa do plano de ação: avaliação, pelo poder público, acerca da possibilidade de acolher as demandas e elaboração, se for o caso, do mencionado plano de desocupação humanizada. Demonstrando, claramente, que a compreensão da consulta prévia, livre e informada, para o Estado brasileiro se estabelece, apenas no evento público e político de diálogo, não no processo de idealização e definição dos caminhos. “Essa tutela intelectual precisa ser superada em nosso país”, afirma o antropólogo Amazoner Aruwaq.


Estranhamente, a Prefeitura Municipal de Boa Vista também está ausente das mesas de negociações. É importante salientar que qualquer decisão tomada e aceita pelos indígenas Warao, impactam a lógica de organização da gestão da cidade em vários aspectos. Por exemplo, a compreensão da demanda educacional das crianças Warao deveria ser debatida nesse momento, possibilitando pleno acesso a educação infantil, como preconiza a Constituição.


Outra ausência consiste na do Ministério da Saúde, apresentado pela SESAU como um dos promotores da decisão de construir a maternidade nesse local. A fim de confirmar essa informação, encaminhei solicitação de esclarecimentos à assessoria de imprensa, apesar de afirmarem que responderiam, não houve manifestação da instituição, mantendo-se desta forma a posição oficialmente da SESAU de que a desocupação é uma ação que envolve diretamente o MS.  

 
 
 

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