Bárbara Silva e Fernanda Mesquita
Boa Vista, Roraima. Extremo Norte do Brasil. Fronteira com a Venezuela.
A desordem causada pela crise vai além da política: é social, pessoal, mexeu com o íntimo das pessoas. Os estrangeiros que dormem nas calçadas também são gente.
Venezuelana afirma que conheceu a palavra xenofobia quando chegou em Roraima. Que tipo de imagem temos passado?
“Lembro-me muito bem de uma situação que passei com o meu marido logo que chegamos. Estávamos em Pacaraima e um oficial nos expulsou da parte coberta da sede da Receita Federal enquanto chovia muito. Tivemos que ficar na chuva, foi humilhante. Nesse momento, eu só queria chorar, não sabia como reagir. Foi ali que entendi que não há nada como a nossa casa e o nosso povo”. – conta Albanis Rodriguez, que chora ao relembrar o episódio.
Empatia. É com essa palavra que começamos a contar a história de hoje. Convidamos você a se despir da sua atual realidade, do seu conforto, das suas certezas e de tudo que você conhece e, por favor, imagine-se nesta situação: vulnerável, incerto do futuro e dependente de desconhecidos que não falam o seu idioma, desconhecem a sua cultura e são os únicos que podem te estender a mão e salvar você ou, infelizmente, podem te empurrar ladeira abaixo e te afundar em toda a sua miséria.
Nesta página, a voz que importa é a de quem não tem espaço pra falar e contar as suas histórias, quem são, de onde vieram, o que querem e, principalmente, como tem se sentido. Por que não nos importamos com o sentimento alheio, do ser humano que não fala a mesma língua que a gente, nem se veste igual, mas tem sangue correndo nas veias assim como nós?
A crise é bem mais profunda do que os jornais nos contam. Ela não envolve robôs, mas sim gente de verdade, que tem sentimentos, dores, angústias, incertezas e medos. Gente que nota o seu olhar torto, que percebe que você sente medo e que sabe quando você não quer tocá-la.
Hoje, a dona da voz deste texto é de carne e osso, tem nome, sobrenome, valores e princípios e outrora ganhava a vida contando histórias. A jornalista Albanis Rodriguez, de 27 anos, deixou de noticiar e tornou-se notícia.
“Eu e meu marido, Frank, fomos forçados a migrar. Eu já tinha dois empregos, ganhava bem, mas não era suficiente. Não dava para pagar as contas, nem para nos alimentar. Eu tenho uma filha de oito anos que ficou com a minha mãe na Venezuela, nós já não podíamos sustentá-la também, nem mantê-la na escola.
E foi por isso que decidimos vir a Boa Vista, para tentar sobreviver e garantir o bem-estar da minha filha. Aos finais de semana, comecei a vender coisas usadas em uma feira no centro da nossa cidade, Barcelona (Anzoátegui), para nos manter enquanto juntávamos dinheiro para vir para Roraima. Vendemos tudo que tínhamos e cambiamos em dólar, pois não sabíamos que aqui valia tão pouco. Chegar aqui e descobrir que não era quase nada nos desequilibrou muito”.
As calçadas como lar
“Quando chegamos em Pacaraima, passamos quatro dias tentando reunir a documentação necessária para entrar no Brasil, o processo estava muito lento. Durante esse tempo, dormimos na calçada de uma farmácia, pois não podíamos nos dar ao luxo de pagar um hotel. Em seguida, viemos para Boa Vista e dormirmos mais quatro dias na rodoviária.
Nesse momento, vivemos coisas horríveis e que nunca imaginamos passar. Certa noite, enquanto dormíamos na calçada, um carro chocou com outro, que estava estacionado bem próximo a nós. Por pouco ele não passou por cima da gente. Foi um susto enorme!
Após isso, fomos dormir no lava-jato de um posto. Passamos o nosso primeiro mês aqui morando nas ruas. Nunca imaginamos que algum dia na vida viveríamos assim, pois tínhamos tudo: família, emprego, estrutura e, de repente, não tínhamos mais nada, nem a dignidade de sermos tratados como seres humanos pelos nossos semelhantes”.
Ninguém gosta de ter seu espaço invadido, tomado, surrupiado. É horrível abrir mão à força do nosso conforto e ser obrigado a lidar com coisas que há pouco tempo não precisávamos e sequer imaginamos que um dia precisaríamos.
É assim que Albanis se sente. Foi isso que ela sofreu. Foi arrancada com violência de tudo que conhecia e foi jogada em uma vida que ela não sonhou, nem construiu para si mesma.
Migrantes ou escravos?
Em qualquer parte do mundo, quem gosta de trabalhar muito e receber pouco? Nós, brasileiros, estamos sempre protestando e cobrando para que tudo esteja dentro dos conformes e justo para todos, da saúde à educação, do acesso à cultura até o acesso à informação.
Então, o que você me diz sobre pagar um valor inferior ao que o prestador de serviço merece apenas por causa da situação de vulnerabilidade em que ele se encontra? Antes de responder, lembre-se: o mundo dá voltas e não sabemos onde estaremos amanhã.
“Saímos do posto e alugamos um lugarzinho. Conseguimos pagar um mês de aluguel, mas logo o dinheiro apertou. Eu consegui um emprego de babá, mas trabalhava das 07h da manhã à 01h da madrugada, mal tinha tempo pra comer e ainda tinha que limpar e cozinhar por apenas R$ 800,00. Eu fiquei por um tempo porque precisava muito, até que não aguentei mais. Estava exausta.
Eu e meu marido perdemos muitas oportunidades de emprego porque moramos no Nova Cidade, bairro distante do centro, e não temos como nos locomover. Tem sido muito difícil, pois temos que escolher entre trabalhar como um escravo ou não trabalhar, ter uma casa para morar ou um trabalho que não nos explore. Essa não é a vida que queremos”.
Venezuelanos são mais que um número
“Foi aqui em Roraima que eu conheci a palavra xenofobia. A situação na Venezuela está horrível, mas quando me vi sendo humilhada, passando por situações que jamais imaginei, sendo olhada com desprezo, eu desejei muito voltar para casa. Não conseguia entender porque me tratavam daquela forma, pois não havia motivo. Nunca fiz mal a ninguém.
Eu sei que muitos dos meus conterrâneos estão vindo e praticando o mal, mas nós não somos todos iguais. Somos pessoas, indivíduos, não quadrilhas e gangues. É difícil ser vista dessa forma, pois não é quem eu sou. Não sou o tipo de pessoa a quem se deve olhar com desprezo ou medo.
Eu demorei a entender a situação, chorei por muito tempo, sofria quando entrava em um local e me olhavam torto. Na Venezuela, sempre tratamos todos bem. Quando eu via um brasileiro, fazia a festa. Nós, venezuelanos, somos um povo caloroso, receptivo. Foi um choque chegar aqui e ser tratada com tanto desamor.
Mas em contrapartida, apesar de tanta coisa ruim, também conhecemos pessoas que nos acolheram de braços abertos. Uma comunidade cristã nos relembrou o que é o amor e que não são todos nesta cidade que não nos suportam. Esse abraço nos ajudou a erguer a cabeça e reafirmar quem somos, quais são nossos valores e lembrar que não devemos nos envergonhar de tentar a vida no Brasil.
Após um ano aqui, já não sofro tanto com os olhares tortos e as más palavras, mas mal vejo a hora de voltar para a minha casa, para o meu país. Essa situação me fez ver as pessoas e a vida de outra maneira. Hoje, entendo que preciso dar mais valor a família, amigos e as coisas que temos, pois não há nada como o nosso lar”.
Essa crise é feita de gente que sente, que tem coração, que é humano como eu e você. E nós, roraimenses, fazemos parte disso.
Os jornais estão falando de todos nós. A pergunta que fica é: que personagem é você? O oficial que obriga gente vulnerável a ficar debaixo de chuva? O empregador que paga menos, mesmo sabendo que o serviço vale mais? A pessoa que olha torto e com desprezo? Ou você faz parte da comunidade que abraça, acolhe e dá amor, pois entende que somos todos farinha do mesmo saco e vamos para o mesmo lugar, independente da nacionalidade?
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