Não se pode flexibilizar os direitos das minorias vulneráveis sem que o pior aconteça. Não podemos aceitar mais ações que desfigurem a Constituição
Juliana De Paula Batista - Advogada no ISA
De acordo com a teoria do “marco temporal de ocupação”, uma Terra Indígena só poderia ser demarcada se comprovado que os indígenas nela estavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O tema está sendo julgado pelo STF no RE 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031), e deve ter continuidade nesta semana.
Quando se conhece em detalhes os processos que buscam anular demarcações de Terras Indígenas com fundamento na teoria do marco temporal, chega-se a uma conclusão: “pau que bate em Chico não bate em Francisco”, como dizia o ministro aposentado do tribunal, Marco Aurélio Mello.
Se em qualquer processo administrativo há pressupostos basilares, como a presunção de legalidade, veracidade e legitimidade, o mesmo parece não valer para processos administrativos de demarcação de Terras Indígenas. No STF, por exemplo, há uma ação em que a parte apenas alegou “marco temporal” e tomou-se a decisão de suspender o registro da área em cartório – última fase do longo e demorado procedimento para a regularização fundiária dos territórios indígenas. O autor da ação, diga-se, não juntou nem um documento sequer que corroborasse a alegação de “marco temporal”.
A terra em questão estava homologada por decreto presidencial e o processo administrativo tramitou por mais de 30 anos. Esse caso mostra que, quando se trata de direitos indígenas, também não se tem tanto apreço à separação dos poderes ou temperança para evitar ingerência do Judiciário nas atribuições típicas do Poder Executivo.
A liminar que suspendeu o registro da terra em cartório, aliás, está vigente há mais de dez anos e o agravo interno que a questiona nunca foi levado ao Plenário. O princípio da colegialidade também não parece ser o forte quando se trata de direitos indígenas. O processo de demarcação foi aberto em 1982. Nele inexistem relatos de saída dos indígenas da área após essa data. O autor da ação também não juntou o processo administrativo de demarcação aos autos.
Resta a dúvida se será com esse grau de “poder geral de cautela” que os tribunais brasileiros vão aferir se, de fato, há um “marco temporal” num processo de demarcação, caso a interpretação seja aceita pelo STF no julgamento que se avizinha.
Leia também:
Há outra coisa que nós, os advogados defensores de direitos indígenas, devemos estar esquecendo de escrever em nossas petições: “protesta por todos os meios de prova em direito admitidas”. Pra provar que foram expulsos forçadamente de suas terras, hipótese em que não se aplicaria a malfadada tese do marco temporal, querem alegar que os indígenas só poderiam se valer de dois meios de prova: ou uma ação possessória judicializada em 5 de outubro de 1988 ou um conflito de fato que tenha perdurado até essa data. Para os indígenas, ao que parece, a latitude probatória do Código de Processo Civil e o direito ao contraditório e à amplíssima defesa podem ser extintos.
A ideia de um Estado que não deixe ao arbítrio do sujeito fazer justiça com as próprias mãos, idem – os povos indígenas se exige conflito que tenha perdurado até 5 de outubro de 1988. E, o que é pior: deles se quer exigir provas que só poderiam ter sido produzidas em 5 de outubro de 1988, ou seja, há mais de 34 anos, quando essas provas sequer eram imaginadas ou exigidas. Como diz o dito popular, há três coisas que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Parece que a impossibilidade de voltar no tempo também só vale para os não indígenas.
Agravam o cenário informações dos corredores do Supremo publicadas na semana passada pelo jornal O Globo, de que “um grupo de ministros” advogava a retirada de pauta do processo para que se discutisse “uma saída negociada”. Ora, de partida os indígenas já sairiam perdendo. Não se deveria tergiversar quando a Constituição grava direitos como inalienáveis e indisponíveis.
Enquanto são só as Terras Indígenas que estão sendo invadidas, alguns brios não perseveram. Contra esses invasores não há o peso da lei. Mais uma vez, quando são as Terras Indígenas ou os indígenas, o pundonor arrefece. Não há direito mais fácil de negociar do que o das minorias.
Naquela terra em que o registro foi suspenso por uma liminar do STF, os invasores estão começando a fazer um loteamento. O desmatamento, já há alguns anos, dispara. Depois, haverá quem diga que a área foi “antropizada” e que a retirada de invasores poderia ocasionar uma “guerra civil”. A situação na terra indígena, quando o decreto de homologação presidencial foi editado, era plenamente contornável – e ainda o é. Parece ser necessário criar razões para colocar Terras Indígenas em xeque. Ou aterrorizar a população dizendo que uma região do tamanho do Sudeste será convertida em Terras Indígenas – mesmo que inexista qualquer tipo de pretensão ou reivindicação verdadeira nesse sentido.
E quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), coloca em votação o Projeto de Lei 490/2007, que também prevê o marco temporal, tema reconhecido por unanimidade pelo STF como de repercussão geral e que está em julgamento, há, ainda, os que se calam sobre a tentativa de constranger o Judiciário e justificam que não se pode criar “conflito” entre os poderes.
O caso posto à análise do STF trata da definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 da Constituição. Não diz respeito, portanto, a questão passível de ser resolvida por Projeto de Lei.
Assistimos horrorizados à tragédia dos Yanomami. E agora, em vez de mais proteção aos povos indígenas, querem dar menos. Não se pode flexibilizar os direitos das minorias vulneráveis sem que o pior aconteça. Não podemos aceitar mais ações que desfigurem a Constituição. É preciso dar um basta ao racismo estrutural ou continuaremos assistindo, estarrecidos, ao “pau que bate em Chico, mas não bate em Francisco”.
Fonte: ISA
Comments