Após mais de meio século desde o surgimento do movimento “Black is Beautiful” liderados por afrodescendentes, nos Estados Unidos da América, em 1960, hoje em dia nunca foi tão necessário falar da estética negra como símbolo de representatividade e autoaceitação. O cabelo, por exemplo, diz muito sobre isso.
Dramaturgias como “A vida e história de Madam C. J. Walker” e “Histórias Cruzadas”, são umas , das várias produções retratam bem a realidade, que muitos negros passaram e ainda passam em nossa sociedade: discriminação, violência e racismo, é comum presenciar.
Em “Felicidade por um fio”, filme de comédia romântica, lançado em 2018, dirigido por Haifaa al-Mansour e escrito por Adam Brooks e Cee Marcellus, mostra a protagonista, Violet Jones (Sanaa Lathan), uma mulher negra, que busca ser perfeita o tempo todo, que precisa lidar com um processo de autoaceitação, após passar pela transição capilar, - Já que desde criança influenciada por sua mãe, ela aprendeu a odiar seu cabelo naturalmente crespo. O filme é baseado no "Best-Seller:Nappily Ever After" de Trisha R. Thomas e mais do que uma ficção, na história é possível reconhecer a realidade de muitos negros ao longo do tempo.
Trailer do filme "Felicidade por um fio" (2018), produzido pela NETFLIX. (REPRODUÇÃO: YOUTUBE)
O cabelo, assim como outras atribuições (pele, traços, cultura, etc.) ligadas aos afrodescendentes não começou a ser diminuído de um dia para cá. Durante a história da humanidade, além da violência, os negros foram ensinados a não gostar das suas próprias características fenotípicas. Esse processo começou assim que os negros foram retirados de suas terras e obrigados a serem escravos em colônias dominadas por brancos.
A estética do cabelo dos escravos negros, como o corte, a forma e os adereços, por exemplo, era rompida ainda a caminho das colônias. Na obra do pintor alemão, Johann Moritz Rugendas, denominada “Negros no fundo do porão” é possível identificar homens e mulheres em grande quantidade, algemados e nus, muitos deles já sem cabelo ou com ele curto. A famosa gravura mostrava as péssimas condições de um navio negreiro.
Em registros como os livros, “Ser Escravo No Brasil”, de Kátia Mattoso, e “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”, de Gilberto Freyre, mostram os africanos com a cabeça forçadamente raspada no momento que eram oferecidos à venda para os senhores dos engenhos.
Livros Ser Escravo No Brasil e O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. (Imagens: Amazon.com)
Para a Cientista Social e pesquisadora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Roraima – UFRR, Regiane Dionizio Lima, esses processos afetaram, não somente a autoestima, mas também o “orgulho de ser negro”.
“Os padrões de beleza, comportamento e cultura estabelecidos pelo colonizador e que deu origem ao discurso de “raça” – aqui a raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica – afetou a relação do indivíduo com a sua identidade étnica cultural”, explicou.
De acordo com a pesquisadora, esses acontecimentos influenciaram negativamente os negros a se afastarem, muitas vezes, forçadamente da sua cultura, e o sujeito – negro – se viu obrigado a “ceder” ao padrão vigente, caso ele quisesse alcançar algum espaço na sociedade.
“O preconceito (racismo) levou a um movimento de busca por alterações/apagamento das características culturais e físicas do negro, como por exemplo a busca por clarear a pele, alisar o cabelo, procedimentos estéticos e cirúrgicos, além de mudanças relacionados aos hábitos culturais”, relatou.
A luta por igualdade dos negros começou há muito tempo na história das Américas, mas foi a partir da década de 1960, que os movimentos culturais, principalmente nos Estados Unidos, se intensificaram. “Black Power” e “Black is Beautiful” (citado anteriormente), por exemplo, não só buscavam conquistar seus direitos civis, mas também eliminar a ideia presente em muitas culturas, que características naturais dos negros, como: pele, traços faciais e o cabelo, são menos atraentes dos que de pessoas brancas.
Ainda segundo Regiane, movimentos culturais, principalmente os voltados para a estética/beleza, trazem de volta a valorização do negro e contribuem com a autoestima e o orgulho de ser e pertencer a uma cultura.
Para ela, os movimentos são importantes, mas também a visibilidade do negro nos meios e espaços ocupados pelo branco, como: TV, música, arte, esporte, política, educação, etc., fortalecem a representatividade e ajuda nesse processo de retomada da identidade cultural do negro.
“O pertencimento cresce e os sujeitos vão aos poucos resgatando e valorizando seus traços culturais e físicos, sejam pelo cabelo Black, pelas tranças (que na cultura tem sua simbologia e significados específicos), pelas pinturas corporais, e outras”, disse.
Conforme a cientista social, quando o negro assume suas características, ele está lutando contra a imposição do outro, de um modelo padrão e assumindo a sua identidade étnica cultural. Ela lembra que ao mesmo tempo em que os negros passaram a valorizar sua identidade, surgiram também, muitos não pertencentes a esses grupos, que com o tempo passaram a utilizar características predominantes dos negros, que anteriormente na história eram vistas como algo feio, "fetichizado", "fora do padrão”.
“Temos que lembrar que os mesmos criadores dos padrões de beleza que subjugaram as outras identidades, são os mesmo que hoje pescam dessa identidade para transformar esse padrão – como é o caso dos lábios volumosos, característica natural das mulheres negras, e passou a ser adotado por muitas mulheres brancas (o preenchimento labial)”, concluiu.
Para o professor em Geografia da unidade básica da Secretaria de Estado de Educação - SEDUC Mato Grosso, Lennon Lustosa, os padrões estéticos brancos impostos pela sociedade, assim como a falta de representatividade preta nos espaços midiáticos desde o seu surgimento, contribuíram negativamente no modo como se enxergam em meio à sociedade.
“Tem coisa mais violenta do que décadas e décadas de novelas e filmes sem ter atores protagonistas negros e negras. Ou mesmo um programa de auditório que fazia uma supervalorização das meninas brancas e louras. Ou mesmo, a não presença de apresentadores de programas de TV de rede nacional com mulheres ou homens negros? Todas essas formas de tratar a negritude no Brasil contribuíram para a não aceitação do corpo negro tanto pela sociedade quanto pela nossa comunidade negra, ”explicou.
Segundo artigo, publicado por BELL HOOCKS, em 2005, para a Revista Gazeta de Cuba – Union de escritores y artista de Cuba, os negros que trabalhavam criticando e alterando o racismo branco sinalizavam a obsessão de muitos negros com os cabelos lisos, como um reflexo da mentalidade colonizada. A partir desse momento os penteados afro, principalmente o black, entraram na moda como símbolo de resistência cultural à opressão racista. Foi nesse contexto, que muitos jovens afrodescendentes pararam de alisar os cabelos e perceberam que aquilo era sinal de uma falsa doutrina imposta pela sociedade
No Brasil, por exemplo, vários jovens submetem seus cabelos a procedimentos químicos, como forma de deixar os fios crespos e cacheados, alisados, geralmente sob influência dos próprios familiares e por não se enxergarem belos perante a sociedade.
A jovem Maralyse Sousa de Alcântara , de 22 anos, sabe bem o que isso. Ainda quando criança, aos 12 anos de idade, passou pelo primeiro processo químico no seu cabelo, fato esse, que foi motivado principalmente por comentários negativos em relação à forma natural que eles tinham e o bullying que sofreu na escola e no meio familiar.
“Recebi muito preconceito quando eu era criança, e fui muito afetada pelas palavras ofensivas direcionadas a mim, que meu cabelo era como bombril, ninho e até vassoura”.
Mara como gosta de ser chamada, somente deixou a química de lado após cinco anos, quando decidiu passar pela transição capilar e retornar seu cabelo crespo natural. O processo foi difícil, pois além de lidar com o processo de autoaceitação, também teve que superar os comentários de que seu cabelo era feio.
“Quando me libertei daquela química e daqueles comentários ruins relacionados ao meu cabelo, me senti livre com o meu cabelo super natural, simplesmente eu amei essa liberdade dos meus cachos e do meu novo eu. Devemos ser livres e nos aceitar da forma que realmente somos”, completou.
Antes e depois de Maralyse Sousa, após uso de alisastes químicos no cabelo (a esquerda), agora com os cabelos crespos assumidos(a direita). FOTO: Arquivo pessoal.
De acordo com Lennon, essa relação com o cabelo afro e qualquer característica da cultura negra ainda sofre um processo de desprestígio em nosso país, mais do que em outros países colonizados. Para ele é uma característica da nossa cultura essa associação negativa entre cabelo e identidade negra, que são reforçadas pela mídia televisiva, cinema e etc. a seguir uma estética branca.
“Quando a criança e adolescente negro, vivem sob essa única visão eles sofrem uma não aceitação de suas características fenotípicas e isso aumenta muito o sofrimento psíquico característico dessa fase da vida, impactando de modo negativo na forma deles se relacionarem e até de não se aceitarem na sociedade, assim como pessoas negras de sua convivência” explicou.
Segundo o professor, esse modo como os jovens se enxergam podem gerar comportamentos de introspecção, de agressividade, de rebeldia ou isolamento em suas vidas. A forma positiva de lidarem com esse problema é através da representatividade, que vem ganhando mais espaço no Brasil, através do Movimento Negro, que tem buscado a valorização da cultura e estética negra em todos os espaços.
“É preciso que esse processo educativo que já está no movimento negro seja expandido para as famílias de todas as condições socioeconômicas, escolas, igrejas, espaços públicos e privados de lazer e os ambientes de trabalho, com o compromisso de desnaturalizar o racismo, a discriminação pela cor da pele que ainda é uma realidade no Brasil.”, concluiu.
Dentre alguns movimentos já presentes na mídia digital, Lennon, que além de professor, também é Integrante do Calunga Capoeira de Angola em Goiânia e ex-participante da juventude do Fórum de religiões de Matriz Africana em Goiás, sugeriu alguns exemplos de valorização da cultura negra, como os blogs: Creola, Dandara, Geledez; Projetos educativos como o EDUCAFRO; Ações educativas de youtubers, na plataforma Youtube, que ensinam sobre a transição capilar; e outras iniciativas nas redes sociais em prol da autoestima, cultura black e o empreendedorismo negro.
CACHOS TAMBÉM SÃO EMPREENDEDORISMO
Foi pensando nessa temática que a cabelereira e especialista em cabelos crespos e cacheados, Cleane Silva Costa, decidiu abrir um salão voltado totalmente para esse público. Segundo ela, a motivação surgiu após perceber a falta de estabelecimentos desse tipo, em Boa Vista. De acordo com Cleane além de cuidar dos cabelos, o salão tem um papel muito importante na sociedade, que é mostrar que o cabelo para ser bonito não precisa ser alisado quimicamente, mas que o volume e a sua definição natural também são únicos e lindos.
Os principais procedimentos que o Studio de beleza da Cleane realiza é a hidratação de definição dos cachos e o processo de transição capilar, técnica essa, que é realizada principalmente por mulheres negras, que querem retirar a química dos cabelos, ela explica os principais motivos que as levam a aderir esse processo natural e como ele funciona.
A abertura de salões, o aumento de produtos estéticos para esse público, assim como a aceitação de suas características afrodescendentes, são reflexos dos movimentos negros que surgiram para lutar pela valorização dos seus atributos naturais perante um padrão branco estabelecido.
Dados de uma pesquisa realizada em 2017, pelo Google BrandLab mostraram que as buscas por transição capilar (o processo de abandonar os alisantes químicos e assumir os cachos naturais) cresceu 55% no Brasil e apontaram que pela primeira vez, houve aumento de procura no Google por cabelos cacheados em comparação a lisos, sendo 232% para cabelos cacheados e 309% para cabelos afro, entre 2016 e 2017.
Infográfico "A revolução dos cachos", pesquisa realizada em 2017.(Reprodução:GoogleBrandLab)
Ainda de acordo com a pesquisa, 1 em cada 3 mulheres foi vítima de preconceito relacionado ao cabelo, e 4 em cada 10 disseram já ter sentido vergonha dos cabelos crespos ou cacheados. Manifestações de apoio aos cabelos cacheados nas mídias sociais, contribuíram para o surgimento de mais cosméticos apropriados para esse público nas prateleiras dos mercados e lojas de beleza, o que indica mais reconhecimento dessa população como consumidora e assumidas cacheadas e crespas.
Vídeo mostra o processo de cuidado com o cabelo cacheado. (Vídeo: Cleane Silva Costa)
Referências :
BBC NEWS/ GOOGLE BRANDLAB/ ARTIGO (FIOS QUE TECEM A HISTÓRIA: O CABELO CRESPO ENTRE ANTIGAS E NOVAS FORMAS DE ATIVISMO) de Dailza Araújo Lopes e Ângela Figueiredo.
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