Professores e escritores indígenas amazonenses se organizam para criar estratégias de ensino do Nheengatu para atingir comunidades e públicos na internet e no ensino superior.
Manaus (AM) – Professores e escritores indígenas amazonenses querem fundar a primeira Academia da Língua Nheengatu (conhecida como Língua Geral). O objetivo é valorizar a língua, que já foi proibida na Amazônia pelos colonizadores. Eles pedem a presença de cursos nas universidades brasileiras e se organizam para criar estratégias de ensino que devem atingir comunidades e públicos na internet.
“A Academia vem para dar visibilidade à língua, para pôr a língua em seu devido lugar, de onde nunca deveria ter saído que é justamente a língua mãe da Amazônia. Queremos trazer o retorno dessa língua”, explica o escritor indígena Yaguarê Yamã, do povo Maraguá.
A Academia deve agregar três ortografias da língua que foram desenvolvidas por povos indígenas da região do Baixo Rio Negro e do Baixo Rio Amazonas, no estado do Amazonas, e da bacia do rio Tapajós, no Pará. A iniciativa é coordenada por 21 membros de várias regiões da Amazônia, a maioria do Amazonas e do Pará. Entre os nomes em destaque estão: Dadá Baniwa e Edson Baré, George Borari, e Yaguarê Yamã.
Com estatuto em desenvolvimento, a Academia da Língua Nheengatu estabelece uma série de atividades a serem desenvolvidas que inclui, dentre outras: produzir e atualizar continuamente um Dicionário Unificado e Ortográfico da Língua Geral Amazônica no Brasil; Criar, alimentar e manter atualizada uma Biblioteca Digital de materiais históricos e atuais, científicos e didáticos sobre a língua Nheengatu; Promover e apoiar a produção de materiais didáticos para ensino da língua Nheengatu nas comunidades indígenas.
Com reuniões sendo feitas desde junho de 2020, o grupo instituiu que a Academia será formada por patronos fundadores, sócios fundadores, entidades associadas e colaboradores.
“A gente se encontrou por meios virtuais e começamos a conversar e discutir de que forma as escolas, as instituições estavam trabalhando a questão da língua nheengatu no seu dia a dia. Percebeu que existem formações paralelas, feitas por indígenas e não indígenas, então a gente viu a importância de se organizar”, explica Edson Baré.
Apagamento da língua
Em 1835, quando a Cabanagem ocorreu na região do antigo Grão-Pará – Pará, Amazonas, Amapá, Roraima e Rondônia -, o Nheengatu foi severamente criminalizado. Indígenas eram proibidos de falar a língua, porque poderia ajudar os líderes da revolta. A Cabanagem só acabou em 1840, com centenas de indígenas mortos. Mesmo após o término, o Nheengatu continuou a ser a língua mais falada da Amazônia pelo menos até 1850-1900, de acordo com estudiosos.
Antes disso, o surgimento do próprio Nheengatu ocorreu através da proibição da língua nativa dos povos. Os missionários católicos criaram o Nheengatu misturando palavras em português e em tupi, para padronizar a linguagem com características dos colonos. Com isso, línguas nativas foram sendo substituídas.
Substituídas, mas não apagadas. É o que explica o professor Florêncio Almeida Vaz Filho, indígena do povo Maytapu, do Programa de Antropologia e Arqueologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). “As estratégias de sobrevivência são muito importantes, os indígenas continuaram (com a língua), eles falavam, contavam histórias aos filhos à noite. Se essa forma fluente da língua se perdeu, a lógica da língua foi preservada”, diz Florêncio.
O professor coordenou, de 2014 a 2017, um curso de extensão em Nheengatu para professores indígenas e tem pesquisas desenvolvidas sobre o tema. Ele explica que o Nheengatu é uma língua viva, que se adaptou e resistiu nas últimas décadas, por insistência dos povos indígenas. Em muitas áreas, como no Alto Rio Negro, ela é muito falada ainda. Em São Gabriel da Cachoeira, a presença dela é tão forte que hoje é uma das línguas indígenas oficiais.
“Os indígenas trouxeram para o português a calma, a cadência, e até o silêncio. A forma como nos comunicamos no português preserva muito o Nheengatu. Independente dos artistas, dos acadêmicos. O que importa hoje é que existem povos que falam fluentemente o nheengatu, e para esse povo não existe crise”, diz.
Florêncio cita, como exemplo da preservação dessa lógica, o costume de dar presentes e distribuir alimentos entre parentes. Em nheengatu, a palavra que expressa essa ação é “putáua”. Os indígenas capturavam os animais, empalharam e davam de presente para parentes.
“Somos frutos de uma longa resistência, resistência cultural. Nós não perdemos a nossa cultura. Quando vemos as pessoas nas ruas andando juntas, íntimas, próximas, tudo isso vem de uma lógica indígena que persistiu, ela é a nossa marca. Não somos iguais”, explica.
No ensino superior
Não há curso de graduação em Nheengatu nas universidades brasileiras. Alguns cursos de extensão foram oferecidos pontualmente, mas a língua continua sendo falada de diversas formas pelos povos amazônicos, sem uma padronização clara sobre seu uso.
O curso de extensão oferecido na Universidade Federal do Oeste do Pará, que ocorreu entre 2014 e 2017, formou 100 professores indígenas para atuação em aldeias. Ele foi construído pelo Grupo Consciência Indígena (GCI) e o resultado foi um amplo reconhecimento das comunidades indígenas do baixo rio Tapajós.
No artigo ‘O Nheengatu no Rio Tapajós: revitalização e resistência indígena’, escrito por Florêncio Almeida Vaz Filho e Sâmela Ramos da Silva, professora da Universidade Federal do Amapá, contam em detalhes como a restituição da língua ocorreu no lugar.
“Os alunos eram convocados a trazer resquícios, palavras, expressões, nomes de peixes, de lugares, de comida, esses retalhos, esses quebra-cabeças. Eles iam dando sentido a essas peças que nem sempre tinham um sentido muito claro no dia a dia”, explica Florêncio.
Antes do curso de extensão, o GCI ofereceu oficinas e mini-cursos da língua. A primeira oficina ocorreu em 1999. Na época, o contato com professores indígenas do Amazonas foi crucial para o reconhecimento dos povos do baixo Tapajós.
“O sentimento de orgulho das suas origens era reforçado pelo contato com os professores vindos do rio Negro, que eram também indígenas, e falavam das suas crenças e vivências. A sua presença conferia reconhecimento e legitimidade aos indígenas do baixo Tapajós, em uma fase em que os seus vizinhos nutriam ainda desconfianças sobre a sua verdadeira indianidade”, explicam os autores.
O curso de extensão foi paralisado em 2017. Ele era feito com verbas de organizações internacionais, que não foram renovadas. Em 2019, outras lideranças indígenas conquistaram recursos oriundos de verbas parlamentares para implementar um novo curso, mas a pandemia da Covid-19 interrompeu a execução. A estimativa é de que dê início ao processo em janeiro de 2022.
Nheengatu tradicional
O WhatsApp também é ferramenta para disseminação do Nheengatu. Desde janeiro de 2021, indígenas e não indígenas fazem parte do grupo “Nheengatu Tradicional”, que hoje conta com 115 participantes. Todos os dias eles conversam na língua de seus povos, discutem dialetos, criam glossários e ensinam traduções.
O grupo é administrado por indígenas que compõem as discussões da Academia da Língua Nheengatu. De manhã, todos se cumprimentam com “purãga ara”, que significa “bom dia”. Além de usar o nheengatu para a troca de mensagens, eles conversam sobre suas culturas, divulgam eventos de valorização do movimento indígenas e não é raro que promovam grandes discussões sobre como se escreve uma determinada palavra em cada região da Amazônia.
Dicionário de Nheengatu
Os escritores Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Egídia Reis e Mario José devem lançar, de forma presencial e respeitando os protocolos da Covid-19, o “Dicionário de Estudos de Nheengatu Tradicional”. O livro está disponível em sites de compras, mas o lançamento presencial ainda não tem data confirmada. O evento deve ocorrer em Manaus.
O Elias Yaguakãg explica que o dicionário foi escrito após ampla pesquisa, com mais de 60 livros publicados pelos autores no processo de coleta de informações sobre o Nheengatu Tradicional. Há 22 anos eles estudam a língua e buscam identificar os padrões e diferenças ortográficas nas diferentes regiões do Amazonas.
“O processo foi custoso e muito longo. Fizemos pesquisas muito a fundo, com pontos de vistas de alguns povos. Estávamos nessa ânsia da questão linguística e decidimos escrever o Nheengatu tradicional, do baixo Amazonas”, explica.
As outras vertentes da língua – dos povos do Rio Negro e Tapajós – serão estudadas na Academia. Elias afirma que muitos caboclos e indígenas não conseguem identificar o nheengatu em suas próprias falas e o dicionário deve colaborar com a identificação.
“Observamos que eles falam o Nheengatu, mas não sabem que falam. Juntam como se fosse tudo português, mas não é. Quando a gente vai ver o dicionário Aurélio, a gente encontra muitas palavras que a gente fala e que não existem ali. Então, é Nheengatu e Nheengatu Tradicional”, diz.
O dicionário faz parte da movimentação dos indígenas pela valorização da língua e está atrelado à iniciativa de criar a Academia e foi publicado pela editora Cintra (São Paulo, 2020). De acordo com Yaguarê, o pedido foi feito pelas lideranças das regiões.
“Se falava, se escrevia, mas precisava ter um senso regulatório. Redigimos e organizamos todo esse trabalho. O que sustenta a nossa ortografia é a tradição, Não é de hoje que se fala dessa maneira, desde os primeiros falantes. Os nossos velhos escreviam e nós mantemos a nossa escrita. É uma vitória do movimento indígena, é uma vitória da língua geral da Amazônia”, diz.
Fonte: Jullie Pereira/Amazônia Real
Comments