Em Roraima, comunidade indígena diverge sobre garimpo ilegal em suas terras. Subsistência de um lado e sofrimento pelo ônus de abrigar uma atividade poluidora no próprio quintal
Nos últimos anos, as instâncias federal e estadual passaram a incentivar a invasão de Terras Indígenas através de Projetos de Lei sobre Garimpo e Mineração, como a Lei Estadual nº 1.453/2021, sancionada pelo governador de Roraima, Antônio Denarium, e derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
De acordo com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), os efeitos negativos desses incentivos se intensificaram entre 2019 e 2020, fazendo dobrar o garimpo ilegal, que foi de 2 mil para 4 mil garimpeiros. Fato que nos relembra horrores do passado, quando na década de 1990 lideranças indígenas do estado solicitaram operações da Polícia Federal (PF) para a retirada de cerca de 15 mil garimpeiros do território.
Na época, os povos indígenas da TIRSS tiveram que enfrentar o tráfico de combustível e drogas, o ingresso de material de garimpo, bebida alcoólica, furto de gado, surto de malária, os desastres ambientais, as ameaças às lideranças, os assassinatos, dentre outras atrocidades que foram registradas no “Relatório: Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”, lançado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
A Comunidade Indígena Raposa II, localizada na TI Raposa Serra do Sol, município de Normandia, em Roraima, é composta por 56 famílias e um total de 151 pessoas afetadas pela exploração de minério por garimpo.
A atividade ilegal divide opiniões. Parte dos moradores defendem a exploração, com a justificativa de uma forma de subsistência, e a outra parte se preocupa com os malefícios que provoca ao meio ambiente e às comunidades indígenas como um todo. Nas proximidades das comunidades Raposa I e Raposa II, existe a “Serra do Atola” onde os garimpos 01, 02, 03 e 04 se instalaram.
Como o garimpo ilegal se instalou
“Há muitos anos, antes da demarcação da Raposa Serra do Sol, tinha um fazendeiro que já tirava a mina que nós chamamos de ouro, na Serra do Cavalo, aqui na Serra do Atola. Nós estamos na região da Raposa, fica próximo ao Napoleão, Raposa, Tarame e Coqueirinho, essa montanha ‘tá’ no meio das comunidades. Isso foi há muitos anos, uns trinta anos, quarenta anos atrás… Depois da demarcação, em 2008, um primo da Raposa gostava muito de pegar ouro de pouquinho, pra poder sobreviver… Em 2014 ele veio pra cá, pra Serra do Atola e começou a tirar ouro de pouquinho. Aí um dos curiosos que anda com celular postou no Face: “olha nós aqui pegando ouro, aqui na Serra da Atola, na Raposa”. Começaram a postar, mas ninguém dava nem atenção pra essas pessoas… Em 2016 que começou a ser visível, mas como eu falei antes, o branco já tinha tirado o ouro há muito tempo, antes da demarcação da Raposa Serra do Sol”, diz o garimpeiro D.T.R., coordenador de um dos garimpos e residente da região.
Dentro da comunidade, a informação é que o garimpo começou, de fato, em 2017. “As pessoas já vinham trabalhando nesse garimpo manual, os moradores daqui mesmo da Raposa, só que não tinha essa exploração. Eles trabalhavam, nunca demonstravam pras pessoas, só começou a aparecer depois que uma pessoa trouxe o genro da cidade. Levou pro garimpo, aí começou a postagem do material, do minério que ele pegou e aí desde lá já começou abrir a visão das pessoas. Começou a vir os brancos e assim foi, foram explorando”, disse o professor Matias, um dos primeiros a denunciar o garimpo para as autoridades.
Os relatos confirmam as informações do Relatório sobre Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil do CIMI, que datam a garimpagem entre 1977 e 1988, além da invasão de pelo menos mil garimpeiros no início de 1991, e, mesmo com as operações da Polícia Federal, que fechou diversos garimpos, chegando a retirar 15 mil garimpeiros em uma delas, as denúncias por parte das lideranças indígenas não cessaram. Ainda em 2004, a PF chegou a fechar 10 acampamentos no curso do Rio Maú.
Eles contaminam igarapés, o ar e impactam a disponibilidade de alimentos
Ainda que a água consumida pela comunidade venha de poço artesiano, os moradores relatam como os igarapés têm sido afetados pelo garimpo. “Afetou nossos igarapés, né? Que tem aí onde a gente pesca, os buritizais e os nossos animais estão bebendo água daí, porque a serra é beirando um igarapé que a gente pesca. Então o Igarapé está contaminado”, diz o Tuxaua Sebastião, líder eleito pela comunidade para representá-la.
“A poluição nos pequenos igarapés que tinham aqui perto, a água chegou a ficar bem vermelha. Então, a gente temeu muito porque os nossos animais pastam por ali, as pessoas até tiraram seus animais do rumo de lá pra não pastarem, beberem água. Mais tarde o pessoal que estava trabalhando na fiscalização do GPVIT, constataram que no igarapé do Juruaquim quando colocava um malhador, pegava o peixe, a carne dos peixes já estava mole. Tudo com certeza foi efeito da poluição”, relata o professor. Relatam ainda que houve extração de madeira das poucas árvores ao redor da Serra, assim como a poluição do ar, no início sentiam um mau cheiro que só amenizou quando realizaram denúncias. Especula-se que os garimpeiros tenham encontrado outras formas de extrair sem deixar um forte odor no ar.
Eles trouxeram doenças
“Logo no início muita gente sofreu aqui com dor de cabeça, febre, gripe. A gente acreditou que tudo isso estava afetando a comunidade, como nós somos mais próximos do garimpo. Mas aí parou um pouco, depois das denúncias aí diminuíram e com esse ano né? Essa chuva aí, as pessoas saíram e não entraram mais porque acesso é de difícil. E agora com certeza vai continuar de novo o aumento de número de pessoas nesse garimpo”, diz o professor.
Além dos casos crescentes de malária, houve ainda o agravamento da COVID-19 logo no início da pandemia. “Essa entrada livre foi trazendo essas doenças. Hoje a comunidade sofreu também essa doença (COVID-19), mas eu acredito que tudo foi trazido por eles, porque aqui a gente não tinha esse costume de estar saindo, logo que saiu a gente sempre conversou, chamou atenção para os cuidados”, diz.
Comunidade diverge sobre garimpo
As pessoas da região relatam conflitos internos, aquelas que se declaram contra o garimpo geralmente passam a sofrer ameaças, temem por suas vidas e pelo território. Já os que defendem o extrativismo, enxergam a atividade como um meio acessível de subsistência, mesmo pondo suas vidas em risco trabalhando em condições precárias.
“Na terra indígena garimpo não sendo legalizado, e mesmo sendo legalizado prejudica a nossa comunidade e a nossa região. Nós ficamos individualistas e pensando mais em dinheiro, trabalhando sem ter lucro de nada”, diz o tuxaua.
O professor também compartilha da opinião do tuxaua e complementa: “Sou contra o garimpo por vários fatores irregulares na terra indígena. Como degradação e poluição do meio ambiente, tanto na fauna e flora. Pessoas não-indígenas na terra indígena fazendo essa invasão, levando drogas e bebidas alcoólicas. Os brancos fazendo os membros das comunidades aposentados carregando e quebrando pedras, isso é mão de obra escrava, né? E também com a entrada de garimpeiros não indígenas, vimos que está acontecendo furtos, roubos dentro da comunidade Raposa I e as lideranças não tomam providências… O garimpo e as comunidades estão servindo como esconderijo dos foragidos. Estão acabando com pasto dos nossos animais no pé de serra. Já tem bastante caso de malária no Napoleão e ainda continuam aceitando a entrada dos garimpeiros. Crianças envolvidas na droga. Tem mais coisas, mas vou parar por aqui”.
Ainda assim, existe quem defenda a permanência, como o coordenador indígena de um dos garimpos. “Essa atividade tem tirado muita gente dos maus caminhos. Os pais, professores, os enfermeiros, os moradores daqui [de] Raposa, Xumina, Napoleão, estão de prova que muito jovem em vez de ficar com foco nas festas, no futebol ou muita droga, essa atividade que tem tirado muita gente desse caminho. Ele não tem incentivado, ele tem amenizado, porque ó pensa comigo, o jovem vem aqui de manhã, voltam para as suas casas seis horas da tarde, cinco horas, quatro horas, vão embora pra suas casas, já estão cansadas, alguns vai no Free Fire [jogo online], alguns vão jogar bola, mas é atividade, ele tem que descansar pra poder voltar no outro dia de novo. É jovem que compra a sua moto, é jovem que compra seu celular, jovem que compra a sua comida. Então é isso que está acontecendo, então essa atividade aqui não tem incentivado pro mal. É muito importante essa serra existir porque se não existisse só Deus sabe o que teria acontecido em termo de pandemia, né? Porque por causa dessa serra, as pessoas também evitam de ir com os vereadores, prefeito, deputados, políticos. Então, essa serra tem nos dado grande benção pra poder sustentar nossa família. Eu não estou dizendo [que] aqui é 100% bom, mas também eu não estou dizendo que trouxe esse lado negativo, só se torna negativo quando alguém já é pedófilo ou drogado ou bêbado, que vem da sua casa né”.
Os efeitos no dia a dia
Durante os relatos, as questões tanto culturais quanto de saúde mental e física aparecem como principais preocupações. “Nós ficamos individualistas, não querendo mais participar de reunião. Cada um tá querendo tocar por si, como se não houvesse tuxaua na comunidade (…) As coisas aumentaram de preço e ficamos assim. A gente vai pescar, já não pega mais nada, têm os garimpeiros mesmo pescando, então não dá mais pra viver como era antes”, analisa o tuxaua.
Além disso, o tuxaua se preocupa com a segurança das pessoas da comunidade, “tem gente diferente que ninguém conhece, além de ter parente da região, tem de outras regiões, e vêm outros que nós chamamos de branco. Que não é indígena. Aí não é como nós, porque a gente se conhece, mas tem gente diferente, de repente pode acontecer coisa pior com alguém. Se estranha por aí, porque nós temos animais como porco, de repente o dono vai atrás, se estranha com alguém, ele pega matando o seu porco… é coisa de se questionar com essas pessoas que estão aí”.
As condições de trabalho dentro das minas também são questionadas. “Aí só tem trabalho, aí você não tem lucro. Eu sei que quem está lá, está pelejando, ele está trabalhando e não sabe o que tem embaixo, de repente ele pode bamburrar, como diz o garimpeiro, ou não, e é só suor perdido. Longe da família, de repente adoece, pega uma malária, morre aí dentro, aí a consequência fica pra família. Às vezes a gente sente dó de ver as pessoas lá trabalhando, bem dizer de graça, comendo pedindo um do outro, então isso não é vida pra quem quer viver numa comunidade, porque a comunidade bem vivida é aquela que trabalha em união, em comunhão com o seu povo. Aí tá um pouco difícil pra gente dizer que ‘tão’ bem, né?”
Já o professor levanta a questão do mal-estar e perseguição por conta das denúncias realizadas. “Cheguei a ser ameaçado, perseguido até hoje, sempre eu quis fazer denúncia, porque eu vejo que é uma coisa que não vai agradar minha comunidade, não vai trazer benefício pra minha comunidade e esse garimpo que está sendo um local de esconderijo de pessoas que fogem, as pessoas que fazem coisas erradas estão todas se escondendo pra cá, pra comunidade”. Relata ainda que: “muitas das vezes quando eu fazia a denúncia, tinha alguém que olhava que sabia que as polícias vinham e eram comunicados né? Os brancos saíam, escondia seus moinhos deixando somente os indígenas, quando as polícias chegavam, não encontravam ninguém de branco. Aí diziam que a gente estava mentindo”.
Fonte:
Glycya Ribeiro - É do povo Macuxi de Roraima, filha da T.I Raposa Serra do Sol. Psicóloga formada pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), é professora em formação e comunicadora popular. É fundadora do coletivo Levante Indígena, no Instagram (@levanteindigena).
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