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Foto do escritorVângela Morais

A educação na fronteira Brasil-Guiana

Atualizado: 20 de nov. de 2022

Evento em colégio de Bonfim - RR aponta lições e desafios da interculturalidade cotidiana.


Por: Vângela Morais .

Alunos do Cemaja durante palestra no Intercâmbio Intercultural das escolas Brasil-Guiana. Foto: Vângela Morais


Há uma fronteira física lá fora, adornada pelo rio Tacutu e a ponte de concreto que toca as bordas da cidade brasileira de Bonfim e a cidade de Lethem na região 9 da Guiana. Nos dias três e quatro de novembro, essa fronteira moveu-se simbolicamente para o interior do Colégio Estadual Militarizado Aldébaro José Alcântara (Cemaja), ponto de encontro de crianças e adolescentes que saem de seus distintos lugares e partilham o espaço comum do colégio em Bonfim, a 124 km da capital Boa Vista, em Roraima.


O evento é chamado de Intercâmbio Intercultural das escolas de Fronteiras, está na sua décima edição, promove uma série de ações educativas entre as escolas de Bonfim e Lethem e se torna um palco privilegiado de observação sobre a escola na fronteira, a partir de seus personagens. Iago Sinésio, 17 anos, e Sasha Atkinson, 16 anos, apresentam alguns contornos dessa experiência. A princípio conversaríamos com um de cada vez, mas eles se adiantaram e propuseram uma partilha. Juntaram as cadeiras e sorriram em cumplicidade evidente. Havia ali uma linguagem corporal entre adolescentes que subverteram a divisão.


Os alunos do ensino médio do Cemaja, Sasha Atkinson e Iago Sinésio. Foto: Vângela Morais


Iago é brasileiro, cursa o terceiro ano do ensino médio e reside a cerca de 20 km da sede de Bonfim, numa vicinal na região do Tucano. Sasha é guianense, de origem Wapichana, o segundo maior povo indígena em Roraima. Ela faz o primeiro ano do ensino médio, mora em Lethem, e assim como Iago, cumpre diariamente o deslocamento para o colégio, apesar da distância transnacional de Sasha ser mais curta, 10 km separam as cidades gêmeas. O colégio, para os dois, se torna um espaço de convergência física, mas não só.


Com as travessias reunidas, o ambiente escolar se transforma em um espaço multilíngue. A língua espanhola se soma mais recentemente à polifonia já marcada pelo português, inglês e línguas indígenas. Com a intensificação do processo migratório na outra borda de Roraima que liga o Brasil à Venezuela, estudantes venezuelanos ampliam a interculturalidade em vários espaços educacionais do estado, a exemplo também de Bonfim.


Lição 1: Reciprocidade


É sobre a pluralidade das línguas que Sasha e Iago fazem questão de destacar a vivência no colégio. “No começo foi bem difícil me comunicar e me relacionar com as pessoas porque eu só falava inglês. Mas agora, às vezes eu ainda erro no português, mas meus amigos me ajudam muito”, disse Sasha, com segurança. Alguns fatores, no caso de Sacha, podem indicar o rápido aprendizado de um segundo idioma: o fato de seus irmãos mais velhos já viverem a mais tempo no Brasil, a rotina no Cemaja, ainda intensificada duas vezes na semana com o curso técnico-profissional em Agroecologia, resultado de uma recente parceria entre o colégio e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (unidade de Bonfim), além da necessidade do domínio dos códigos linguísticos para a inserção nos grupos sociais, especialmente importante na vida dos jovens. Em seguida, Sasha faz uma ponderação: “Claro, eu sou mais forte no inglês, como uma guianense e uma cidadã de lá, o meu país me ensina muitas coisas. E eu trago esse ensinamento e compartilho com o Iago. Às vezes eu falo inglês com ele, ele fica confuso e aí eu explico”.


Iago lembra que essa solidariedade também ocorre durante as aulas de português, inglês e espanhol. “Dependendo da língua nós, os alunos, também ajudamos os professores a ir tirando as dúvidas dos colegas”. Mas, e as línguas indígenas? Segundo estimativa do IBGE 2020, quase a metade dos habitantes do município de Bonfim se declara indígena, e muitos dos alunos das escolas de fronteira, do lado da Guiana e do Brasil, são Wapichana ou Macuxi. Essa ausência é parte de um contexto de violência histórica de longa data, em que os processos de colonização investem contra as línguas dos povos originários. Bonfim é um dos municípios brasileiros que cooficializou as línguas Wapichana e Macuxi, por meio da lei 211 de 2014, mas o ensino dessas línguas tem se dado mais junto às escolas das comunidades rurais, onde se concentram um maior número de indígenas.


Lição 2: Silenciamento e resistência indígena


Jama Wapichana Peres Pereira é ativista indígena e pesquisadora da sociolinguística na fronteira Brasil-Guiana. Nascida e criada em Bonfim, seu povo vem de uma comunidade no sul da Guiana, Maruranau. Ela, egressa das escolas da região, é graduada em Gestão Territorial Indígena e mestre em literatura indígena pela Universidade Federal de Roraima. Olhando a fronteira pela experiência escolar, Jama diz o quanto a escola é um lugar de intercâmbio e de trocas culturais: “Desde o ensino fundamental, médio, as escolas de fronteira sempre receberam muitos alunos vindos da Guiana. E isso nos possibilitou muitas trocas tanto na língua, quanto na partilha de alimentação, a gente gosta muito do curry, do rôti, e também da dança, do reggae”.


A ativista Jama Wapichana, egressa do Cemaja. Foto: arquivo pessoal


Por outro lado, Jama indica a palavra silenciamento como uma lição a ser enfrentada pelas escolas: “há um apagamento de não reconhecer quem a gente é, por mais que se viva ali no contexto de fronteira que está em constante transformação, conexões com outras línguas, é muito difícil alguém se identificar enquanto povo indígena”.


Essa reflexão sobre identidade indígena em lugar de fronteira, para Jama, foi avivada na academia e de modo processual: “primeiro você é provocada, e essa situação também lhe leva a provocar e a buscar agir. Tenho trabalhado essas visibilidades, chamando a atenção de como a língua está muito relacionada à nossa identidade indígena”. Mas essa consciência, segundo Jama, deve chegar mais cedo, “o reconhecimento e a valorização de ser indígena, a partir de nossas línguas, devem estar na base, desde a educação infantil, inclusive com o suporte da literatura indígena”. Ainda sobre a visibilidade dos povos transfronteiriços, a ativista argumenta: “É importante associar uma dimensão espiritual ligada à terra, porque para nós enquanto povo não existe fronteira, toda essa mobilidade que passa na fronteira também é um espaço místico, espaço de continuação de uma ancestralidade caminhante”, conclui.


Ponte sobre o rio Tacutu na divisa Brasil-Guiana. Foto: Vângela Morais


De acordo com a coordenadora pedagógica do Cemaja, Lusmaia Ferreira de Souza, a diversidade linguística da região vem sendo trabalhada pela instituição nos festivais de línguas, com a sexta edição realizada este ano. No rol dos idiomas, as línguas indígenas passaram a fazer parte mais recentemente. “Porque a ideia micro era a língua inglesa, espanhola e o português. No segundo evento já colocamos a libras, porque temos alunos surdos. E eu, também como professora de história, comecei a sugerir as línguas indígenas. Em algumas turmas é possível encontrar alunos indígenas falantes de sua língua, mas o uso é mais frequente entre idosos das suas comunidades”.


Lição 3: Isolamento na pandemia


No cemaja, o movimento de gestores, professores, alunos e pesquisadores convidados durante o evento é um dos símbolos do recomeço, depois de dois anos de espaços vazios e dos desafios do ensino remoto. Durante a pandemia de covid-19, a fronteira foi duramente percebida como a linha que separa. O Colégio que oferece o ensino fundamental, médio e o programa de Educação de Jovens e Adultos (Eja) foi desterritorializado, faltou-lhe o chão para os encontros, laços culturais e intelectuais. O rompimento dessa malha de conectividade foi sentido por todos.

O aluno Iago processa essa experiência de dentro para fora da escola: “Morar na fronteira é muito bom, mas tem suas dificuldades. Na pandemia foi muito difícil ver a fronteira fechada. Pessoas que moram no Bonfim e trabalham em Lethem e vice-versa, que usam e dependem dos serviços do país vizinho...para quem vive na divisa foi muito mais difícil, eu acho”.


O antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini diz que as fronteiras não separam somente um território nacional de outros. Há fronteiras dentro do próprio país, espaços que podem reproduzir zonas de exclusão e solidariedade. Na pandemia, alunos guianenses ficaram do outro lado da ponte e alunos brasileiros e migrantes venezuelanos viveram outras fronteiras dentro do país. Especialmente indígenas, ficaram separados em áreas vicinais de difícil acesso no período de chuvas intensas no município de Bonfim, outra barreira foi a impossibilidade do acesso digital.


Para o diretor administrativo do Cemaja, Major Denilson Cabral, “com o ensino remoto, nem todos tinham o aparelho capaz de receber esse material da plataforma, então foi uma dificuldade enfrentada por todo o sistema. E nós recebemos esses alunos que não contaram com essa base no ensino fundamental, não estiveram frente a frente com o professor. Os nossos professores realizaram um trabalho imenso para descobrir em que nível estavam esses alunos”.


Esses e outros desafios, segundo o Major Denilson, são compartilhados entre a equipe do colégio que foi militarizado em 2018. Além da gestão administrativa, o colégio possui uma gestão pedagógica e esses dois pilares “têm suas atribuições e autonomia”, conforme relata o professor Flávio Rodrigues, responsável pela parte pedagógica. “Nos eventos pedagógicos, a exemplo do intercâmbio intercultural das escolas Brasil-Guiana, somos nós os professores que estamos à frente, mas os militares dão o suporte na parte disciplinar”, enfatiza.


Sobre a presença militar, o Major Denilson se mostra ambientado no contexto escolar dessa fronteira: “Eu sou filho de Bonfim, aprendi o meu primeiro fonema aqui. Também trabalhei os últimos dez anos de serviço da polícia militar em Bonfim, conheço quase todos os moradores e seus filhos daqui da sede. Tive em meu favor uma base da pedagogia porque cursei o antigo magistério. Além disso, fui aluno do outro lado da fronteira, em Lethem. Na minha infância estudei uns cinco anos lá, no mesmo colégio que hoje os nossos professores e a universidade foram visitar que é St. Ignatius Scool”, numa referência ao dia de atividade realizada no país vizinho.


Atividade de intercâmbio no St. Ignatius Secondary School, Lethem, Guiana. Foto: UFRR


Lição 4: Iniciativa


A fronteira inspirou o professor Paulo Ricardo de Andrade, ele mesmo um migrante, atravessador de divisas. Cearense em Roraima desde 2004, o professor Paulo é o idealizador do projeto Intercâmbio intercultural das escolas da fronteira Brasil-Guiana, realizado desde 2012. “Na minha prática pedagógica com os alunos sempre interagi com as diversidades, é muito rico trabalhar na fronteira. Existem as dificuldades de uma alfabetização numa segunda língua, mas são alunos muito determinados e responsáveis. E fora dos muros da escola é muito rica essa interação também”.


Professor Paulo Andrade, idealizador do projeto. Foto: Vângela Morais


O professor relembra que foi influenciado por um programa do Ministério da Educação, em que a Universidade Federal de Roraima (UFRR) coordenava ações na fronteira Pacaraima e Santa Elena de Uiaren. “Eu peguei a ideia e pensei na nossa outra fronteira, com a Guiana. De lá para cá estamos aprimorando as atividades de divulgação do conhecimento nas escolas nos dois lados e ampliando as parcerias”. Paulo articula institucionalmente o evento a cada ano. “Eu vou com muita frequência na UFRR, em Boa Vista. Conheço alguns grupos e pessoas, cruzo a universidade a pé, da avenida Venezuela à avenida Ene Garcez, converso, convido e articulo”, explica ele.


Depois da pausa forçada pela pandemia, o professor Paulo conta que o projeto voltou forte. “Contamos com a presença da Universidade Federal do Amazonas que já é parceira de outros anos, assim como a UFRR que, por meio da Pró-Reitoria de Extensão e da Coordenação de Relações Internacionais, possibilitou a realização de 20 atividades”, comemorou. Cerca de 500 pessoas participaram de palestras, oficinas, exposições, rodas de conversa sobre diferentes abordagens científicas e saberes construídos e difundidos além-fronteiras.

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