Documentos e imagens inéditas confirmam que os moxihatëtëmas da terra ianomâmi estão em risco.
A expressão "isolados" vem perdendo significado prático para os indígenas moxihatëtëma thëpës da região da serra da Estrutura, dentro do território ianomâmi, em Roraima.
Documentos e imagens inéditas obtidos pela Agência Pública mostram a presença do garimpo a apenas 12 km dos únicos indígenas em isolamento voluntário confirmados no território ianomâmi pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
Também há um segundo ramal garimpeiro, maior, há 42 km dos indígenas isolados. As informações foram checadas a pedido da reportagem pelo analista Heron Martins do CCCA (Center for Climate Crime Analysis).
Martins explica que as coordenadas de longitude e latitude das imagens de satélite (Sentinel 1 e Sentinel 2) confirmam os ramais de garimpo, ambos com pista de pouso clandestina na região próxima onde habitam os moxihatëtëmas. Uma das pistas clandestinas está no meio do caminho entre o garimpo mais distante e o mais próximo, a cerca de 23 km dos isolados.
As imagens mostram ainda as cicatrizes na floresta, fruto da exploração ilegal de ouro na região.
Lucca**, uma fonte próxima à Funai, afirma que o órgão indigenista tem conhecimento da proximidade desse ramal garimpeiro pelo menos desde março do ano passado, quando um relatório de monitoramento comunicou à Funai em Brasília.
Lucca conta ainda que outros sobrevoos posteriores a março de 2020 foram realizados pela Funai para monitoramento dos isolados — um deles em 2021. Segundo seu relato, os relatórios com os alertas da presença garimpeira, no entanto, não implicaram nenhuma ação para desmantelar o garimpo próximo aos moxihatëtëmas. "Vão matar uma comunidade inteira que não foi contatada e Brasília [Funai] está fazendo de conta que não vê", afirma
Luciano Pohl, gerente de povos isolados da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), diz que a situação requer uma ação imediata do governo para a proteção dos indígenas. "É grave", diz.
O antropólogo e analista legal da CCCA, Bruno Morais, diz que 12 km de distância de floresta, para indígenas, "é a distância de um quintal, ou menos". Segundo ele, "indígenas, quanto mais isolados, percorreriam 12 km em pouco tempo, o que nos leva a imaginar que, se de fato estiverem aí [garimpo], esse grupo já pode não estar mais 'isolado'. Como você deve imaginar, essa seria uma situação crítica e demandaria a intervenção imediata”.
Acossados pelo garimpo
Um dos documentos enviados à Funai em março do ano passado alertando sobre a situação foi obtido pela reportagem e registra que "o garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e cultural dos moxihatëtëmas, cujo território se encontra cercado pela invasão garimpeira".
O documento cita, por exemplo, a existência de recipientes de material não identificado nas fotografias do monitoramento aéreo. "Em relação aos recipientes, é provável que se trate de carotes de combustível de 50 litros, encontrados facilmente em pontos de garimpo. Este fato nos remete aos relatos de que os indígenas estão andando em locais abandonados ou de ocupação recente por garimpeiros.
A fotografia acima é inédita, foi registrada durante o sobrevoo da Funai no ano passado e está anexada ao relatório enviado a Brasília. Sobre a imagem, o relatório registra: "Embora a criança no centro da foto acima tenha empunhado seu arco contra nós, a maioria dos indivíduos pareceu não se incomodar com a presença da aeronave — muitos apenas observaram, enquanto outros continuaram com seus afazeres normalmente, quebrando lenha, consertando as telhas. Tal reação confirma informações que obtivemos sobre o costume do grupo com o frequente tráfego de aviões do garimpo".
O documento corrobora o diagnóstico de outro relatório, este público, lançado em março de 2021 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye'kwana (Seduume) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
Os dados de "Cicatrizes na floresta - evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2020" revelam o aumento da pressão sobre os moxihatëtëmas, "acossados pelo aumento da circulação de garimpeiros na região da serra da Estrutura, a poucos quilômetros de sua casa coletiva. Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio", afirma o documento.
Luciano, da Coiab, explica que, no caso dos indígenas isolados, os riscos com a proximidade do garimpo se agravam pela vulnerabilidade a que ficam expostos, podendo ser contaminados com doenças levadas pelos invasores - "ainda mais no momento de pandemia de Covid-19". "Em situações assim, uma simples gripe seria capaz de dizimar vários integrantes do grupo", afirma.
No livro "Cercos e resistências — povos indígenas isolados na Amazônia brasileira" (Instituto Socioambiental, 2019), a liderança indígena ianomâmi Davi Kopenawa fala sobre a relação com os moxihatëtëmas.
"Eu estou muito preocupado com eles. Eles nos protegem, assim como nós os protegemos […] Eu não queria que os garimpeiros matassem mais eles. Eles estão protegidos por eles mesmos. Eu queria que o governo protegesse eles, então a gente quer denunciar, espalhar a mensagem no Brasil e fora", diz no livro.
Em março do ano passado, o líder e xamã ianomâmi fez um apelo em favor dos indígenas isolados durante sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. "A ONU precisa falar com as autoridades do Brasil para retirar — imediatamente — os garimpeiros que cercam os isolados e todos os outros em nossa floresta."
Questionada sobre a situação de urgência e se teria conhecimento do garimpo próximo dos isolados, a Funai respondeu à reportagem que tem realizado o monitoramento ininterrupto do grupo por meio da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Yekuana.
"As medidas de monitoramento vem sendo acompanhadas pela ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF)/RR no âmbito da reativação das Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) da Funai. A fundação esclarece ainda que foram verificados garimpos próximos à Serra da Estrutura, os quais foram desativados na operação para a reativação da base da Funai na região (Bape Serra da Estrutura). Além disso, a Funai realiza continuamente ações de monitoramento da ocupação territorial desses indígenas isolados, bem como iniciativas de combate ao garimpo na região."
"Registro 76"
O território ianomâmi é a maior terra indígena (TI) do país, onde vivem mais de 26 mil indígenas dos povos ianomâmis e ye'kwanas, distribuídos em 371 aldeias. O território foi reconhecido como de ocupação tradicional, demarcado e homologado em 1992. Os moxihatëtëma thëpës pertencem ao subgrupo ianomâmi de denominação iawaripë, que, segundo os registros históricos, chegaram a ser contatados nas décadas de 1950 e 1960
“Os moxihatëtëmas são um grupo isolado cuja sociabilidade é marcada por uma recusa radical de estabelecer quaisquer relações de afinidade e aliança, mesmo com outros indígenas" trecho de documento da Funai obtido pela reportagem.
A designação do nome remete ao fato de que esses indígenas manteriam o prepúcio do pênis (moxi) preso entre dois barbantes (hatëtë) amarrados na cintura. Ainda segundo o livro "Cercos e Resistências", nos anos 1990 especulou-se sobre o desaparecimento do grupo devido a confrontos entre os moxihatëtëmas, garimpeiros e outras comunidades ianomâmis nas regiões dos rios Catrimani, Mucajaí e Apiaú.
Em 1995, um relato divulgado pela Funai reportou que dois garimpeiros teriam sido flechados por eles na região do Alto Apiaú. Mas somente em julho de 2011, durante uma missão de reconhecimento aéreo, o grupo foi localizado novamente — no órgão indigenista, o grupo é referenciado como "Registro 76 - Serra da Estrutura". No total, diz o documento da Funai, "os isolados realizaram cerca de 7 a 11 migrações em 26 anos", sendo que o último deslocamento teria ocorrido em 2015, devido à presença garimpeira no entorno do território.
O grupo atual dos moxihatëtëmas seria composto por até cem indivíduos que habitam um xapono (na imagem acima) — espécie de "casa comunal elíptica composta por uma quinzena de secções de tetos inclinados e com abertura para um pátio comunitário e com ampla área de roças adjacentes, além de roçados mais distantes", afirma o documento.
A equipe da Funai que monitorou os moxihatëtëmas no ano passado se deparou ainda com a ausência de três famílias que não estavam mais habitando o xapono principal. A situação de declínio demográfico, relata o documento, pode se tratar de uma migração ou fragmentação social: "contudo, é inevitável constatar que um dos principais motores das migrações é a enorme pressão decorrente da invasão garimpeira: são abundantes os relatos e vestígios de conflitos entre os moxihatëtëmas, alguns com vítimas fatais. Não podemos descartar que as três famílias faltantes na contagem da casa comunitária podem ter sido vítimas de agressões por parte dos garimpeiros”.
Kopenawa conta em "Cercos e Resistência" que, quando ouviu os parentes conversando sobre os moxihatëtëmas tinha mais ou menos dez anos. "Eles são difíceis de encontrar. Eles não gostam de presentes. Eles são um pouco altos. Fortes. Eles falam a língua yaroamë. Eu não entendo, queria entender, mas não quero mexer com eles, não. Eu não vou mexer com eles e eles não vão mexer comigo. Deixa eles em paz, deixa viver como escolheram o resto da vida", diz.
Segundo a tabela oficial de povos indígenas isolados no Brasil elaborada pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, existem oito registros de presença de povos indígenas isolados na terra indígena ianomâmi, mas "apenas o Registro 76 - Serra da Estrutura" é uma referência confirmada.
*Esta reportagem faz parte do Especial Amazônia Sem Lei, da Agência Pública — apublica.org
**O nome foi alterado a pedido da fonte para evitar retaliações.
Fonte: Uol
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