“A arte é percepção, deve-se absorver e refletir o que é, e o que pode ser”
(Foto: Rede Amazoom)
Arte pintada na escola Aplicação durante o IV Grafita Roraima
O que se pintou em três mãos no mural do Colégio de Aplicação é o retrato de retirada, de partida. Em um barco, mulheres, homens e crianças navegam sob um rio étnico, onde as fronteiras não foram desenhadas. No mural, o grupo em uma canoa rema sem medo para o além-mar ou além-rio. A felicidade está ali, expressa em finos e coloridos traços. Essa é uma interpretação do mural pintado por Maria Jo, Diana Afronativa e Luis Hernadez, do Urbano Aborigen- fundação cultural de artistas da Venezuela- que estive presente na IV edição do Grafita Roraima, no final do ano passado.
O coletivo trouxe o trabalho Kayapa Sur, que faz um convite à integração latino-americana por meio da arte e do reconhecimento da identidade do continente, o qual, vivenciou processos coloniais semelhantes, e a resistência é o fio unificador.
A arte como uma ferramenta da memória é utilizada para recordar as similitudes do povo sul americano. A mulher cantarolando no centro do mural pintado por Urbano Aborigen, sob tons de verde e bege, formando uma figura emblemática que conduz o olhar como um ponto de atenção, não precisou de materiais mirabolantes, apenas de tintas para parede comum e bisnagas coloridas para ser traçada e feita realidade. É assim que se pinta na crise venezuelana, se não tem spray- muitas vezes pelo alto custo-, o material é substituído, como enfatiza Luis “Não sou artista somente com spray. Busco ser um artista integral, pois a arte é percepção, deve-se absorver e refletir o que é, e o que pode ser”.
“Absorver e refletir”, essa frase diz muito sobre a característica política da arte mural venezuelana. Em Caracas, capital do país, o que se vê desenhado nos imensos murais no centro da cidade são predominantemente palavras de ordem, frases revolucionárias se mesclando com rostos de Ali Primera, El Negro Infante e Chávez, milhes de figuras do Ex-presidente Hugo Chávez Frias, umas mais realistas que outras, mas todas como um sinal de devoção e respeito pelo presidente do povo, como muitos consideram ou um dia consideraram.
(Foto: Rede Amazoom)
Maria Jo artista venezuelana na escola Aplicação durante o IV Grafita Roraima
A pintura política é fruto da efervescência revolucionária que tomou conta da Venezuela desde a transição do século, a partir da revolução bolivariana que instituiu um novo modelo de sociedade com a intenção socialista de ser, um socialismo dentro dos limites da globalização. Mas, sem dúvidas uma tentativa revolucionária, que logrou mudanças profundas no país, democratizando em muitos aspectos o acesso à cidade, à educação, saúde , comunicação e com certeza à arte para as classes populares. Nesse impulso de democratizar o espaço popular foi criado em 2005, o Ministerio del Poder Popular para la Participación y Protección Social , com a função de impulsionar a participação e o poder popular na execução de projetos de desenvolvimento integral e ação da e para a comunidade organizada. A partir daí, coletivos antes sem apoio estatal, comunas e organizações comunitárias passaram a receber incentivo financeiro do estado e participar das tomadas de decisões em envolviam o desenvolvimento das mesmas.
(Foto: Rede Amazoom)
Maria Jo artista venezuelana na escola Aplicação durante o IV Grafita Roraima
Para Maria Jo, antes da revolução socialista na Venezuela o povo era subestimado e marginalizado. “A consciência política foi ensinada por Chavéz, ele olhou para o povo e nós aprendemos a seguir lutando, apesar do nosso carma petroleiro”.
Muitos jovens nasceram e cresceram dentro deste contexto de empoderamento comuntário. Esse foi o caso de Maria , Luis e Diana, que criaram junto a outros artistas o coletivo Urbano Aborigen desde 2011. Nesses anos de trabalho, eles percorreram alguns países latino americanos, pintaram muitos muros e corpos, escreveram projetos, deram oficinas para a comunidade em geral e agora, nesse momento de transição na Venezuela, eles buscam a integralização da identidade latino americana para resistir à crise.
Com a intensificação da imigração em massa derivada da situação política e econômica da Venezuela, o Urbano Aborigen está dividido, além do país nativo, entre Argentina e Brasil. Mas, continuam investindo principalmente na continuidade do Kayapa Sur nos espaços de imigração.
(Foto: Rede Amazoom)
Luis artista venezuelana na escola Aplicação durante o IV Grafita Roraima
Maria confessa que, com o agravamento da crise eles estão pintando menos “Para comprar o material está dificil, até para nos reunir está complicado, a necessidade é outra agora, mas quando podemos estamos juntos e trabalhando, difundindo a nossa cultura”. Diz
Depois do Grafita Roraima, Diana e Luis resolveram migrar para Boa Vista, agora, junto a outros venezuelanos e brasileiros eles estão organizando eventos de integração cultural entre Brasil e Venezuela, como a Tomada Cultural Alegria Venezuela, que ocorreu em fevereiro deste ano, com muita salsa, música e acolhimento. Os eventos tem o intuito de diminuir a xenofobia e violência vivenciada por seus conterrâneos no estado e também de continuar na ativa do movimento artístico, em busca de fortalecer a cultura entre Brasil e Venezuela e defender o legado de fortalecimento das bases comunitárias.